
por Cauê Bocchi
Em sua viagem de volta a Ítaca depois da Guerra de Tróia, Ulisses sabia que passaria por uma região perigosa – às voltas do Mar Mediterrâneo – habitada por sereias. O canto delas atraía os homens para uma região rochosa, até que estivessem perto o suficiente para que as sereias os devorassem. Ulisses, então, ordenou que toda a sua tripulação colocasse cera nos ouvidos, e que o amarrasse ao mastro da embarcação – de forma que ele não pudesse se desviar em direção às sereias. Resumo da história: quando os cantos começaram, Ulisses fez de tudo para conseguir se desamarrar do mastro e navegar em direção às sereias, mas a sua precaução o salvou da morte, e a embarcação prosseguiu em segurança.
Ulisses talvez seja o personagem mais sábio de Homero, e mesmo ele não conseguiria resistir à morte certa não fosse a limitação que ele impusera a si mesmo; no caso, a solução envolvia a limitação de sua própria mobilidade física durante o período de tentação. Se não fosse por essa limitação, talvez nos decepcionaríamos com Ulisses; talvez o chamássemos de fraco. No fim, a grande virtude de Ulisses foi reconhecer a sua falibilidade, a despeito de todos os seus outros atributos notáveis.
Dizer que todo político é desonesto talvez seja uma simplificação incorreta; nossos políticos, na verdade, navegam permanentemente ao redor do canto das sereias, e não há nada que os limite. É provável que muitos dos políticos de hoje quisessem uma sociedade melhor, e estivessem dispostos a fazer o seu máximo para que isso ocorresse. Entre a intenção e a realidade, contudo, existe uma distância tão grande quanto Tróia e Ítaca, quase que totalmente preenchida por sereias de toda espécie: generosas verbas de gabinete, emendas parlamentares milionárias, reeleições legislativas ilimitadas, influência para apadrinhamentos políticos e indicações de cargos etc. Sem nada que limite ou elimine essas regalias, não há Ulisses que aguente.
A resistência de muitos a algumas das principais bandeiras e posicionamentos do NOVO – privatizações e meritocracia, por exemplo – não é especialmente relevante; na verdade, é inclusive saudável – afinal, as unanimidades costumam indicar que algo não vai muito bem com a república. Não há dúvidas de que muitas pessoas de bem acreditam verdadeiramente que o caminho para um Brasil melhor passa por um Estado grande e provedor, e o fato de eu pessoalmente ser incapaz de acompanhar ou entender uma vírgula sequer da linha de raciocínio dessas pessoas não desqualifica as suas boas intenções. Os entusiastas do NOVO não são necessariamente melhores pessoas do que os apoiadores de um PSOL, por exemplo, por conta dos valores que os primeiros defendem em detrimento dos últimos. A confusão entre caráter e orientação política é, para dizer o mínimo, sinal de ignorância. O ponto fundamental do NOVO é que ele – independentemente de sua orientação ideológica – já nasce mais sábio do que qualquer outro partido político no Brasil, justamente porque entra no cenário político com diversas limitações.
Não existe partido no Brasil que defenda estatutariamente o fim do fundo partidário. O NOVO é exceção. Muito mais do que uma orientação ideológica derivada do fim de recursos públicos destinados a partidos políticos, o fim do fundo partidário representa um limitador que o partido confere si mesmo: se o partido se desviar em direção ao canto das sereias, seus filiados param de contribuir, e o partido morre. Nenhum outro partido sofre essa consequência, o que os faz invariavelmente navegar por onde não devem. À exceção do NOVO, não existe partido no Brasil que assuma institucionalmente o compromisso de reduzir verbas de gabinete e número de assessores, ou que proíba que aqueles que ocupem cargos da burocracia partidária candidatem-se para cargos eletivos. Mais uma vez, além dos valores subjacentes ao NOVO que justificam essas medidas, elas limitam o poder dos integrantes do NOVO que chegam ao poder, e garantem que os ocupantes de cargos eletivos não sejam fiscalizados por si próprios no âmbito do cumprimento do programa partidário – o que configuraria um óbvio conflito de interesses, comum nos demais partidos. Em síntese, a virtude do NOVO não está em defender esse ou aquele valor, mas em defendê-los de modo a tomar todas as medidas possíveis para que eles sejam perseguidos sem desvios, ao custo de sua própria existência.
Há pessoas incrivelmente capacitadas nos diversos matizes políticos existentes, e boa parte delas tem a intenção sincera e genuína de fazer um país melhor; o que a experiência ensina, contudo, é que é um erro imperdoável confiar na própria santidade ou santidade alheia quando se trata do poder: em maior ou menor grau, somos todos corruptíveis, e reconhecer essa condição humana é o primeiro passo para combater a própria corrupção. Todos os partidos têm os seus Ulisses, mas somente o NOVO tem os seus Ulisses amarrados, e apenas prudentemente amarrado é que o Brasil poderá navegar pela marola que é tsunami e finalmente pisar em terra firme.
Cauê Bocchi é advogado (FGV-SP) e professor de redação no curso pré-vestibular desta instituição. Foi candidato a vereador pelo NOVO em São Paulo nas eleições de 2016.