STF ignora direitos e persegue família envolvida no caso de Roma

19 de julho de 2024

O processo de desmonte e anulação da Operação Lava Jato teve um argumento central: os atos e decisões de procuradores e juízes estariam marcados por parcialidade. O STF, que durante anos referendou tudo o que foi feito pela 13ª Vara Federal de Curitiba, deu um cavalo-de-pau jurídico a partir de 2020 para salvar políticos e empresários de punição, tudo em nome de um suposto garantismo penal. Entretanto, embora alguns ministros da Corte pareçam muito preocupados com a presunção de inocência de poderosos, não demonstram qualquer misericórdia em relação à família Mantovani, vítima de uma escandalosa perseguição jurídico-policial há mais de um ano.

Em 14 de julho de 2023, no aeroporto de Roma, a família Mantovani cometeu o único ato imperdoável da República: envolveu-se em um entrevero com um ministro do Supremo Tribunal Federal. A briga entre os Mantovani e Alexandre de Moraes foi objeto de investigação da Polícia Federal, em que pese haver ocorrido em território italiano, em inquérito conduzido pelo delegado Hiroshi Sakaki.

Contrariando a jurisprudência e o bom senso, a investigação teve início com um mandado de busca e apreensão contra os acusados poucos dias após o ocorrido. Trata-se de uma medida invasiva que deveria ser utilizada como último recurso, e não como a primeira ação. Além disso, antes de qualquer apuração policial, a família foi hostilizada publicamente pelo presidente da República e pelo então ministro da Justiça, Flávio Dino.

Os vídeos que comprovariam a suposta agressão nunca foram divulgados e seguem em sigilo por ordem de Dias Toffoli. O primeiro relatório da Polícia Federal sobre as imagens foi periciado por um agente da PF, e não por um perito, como seria o correto, o que levou a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais a questionar a isenção da investigação. Em resposta, por determinação do diretor-geral da instituição, a corregedoria da Polícia Federal abriu um processo disciplinar para investigar a  reclamação do presidente da Associação, alegando que ele estaria favorecendo a “defesa dos agressores”. Há um problema adicional nas eventuais provas com base nos vídeos do aeroporto: eles não têm áudio. Não há como saber o que foi dito de lado a lado da briga. 

Como as informações, provas e depoimentos não são conclusivos acerca do que houve em Roma, e dada a reduzida ofensividade dos supostos crimes, a PF optou por arquivar o caso sem indiciamentos. Mas a Procuradoria Geral da República solicitou, e Dias Toffoli acatou, o aprofundamento das investigações.

O imbróglio é emblemático. A lei brasileira não tem previsão de foro especial para a vítima, mas só para o acusado. Nenhum dos Mantovani ocupa cargo com prerrogativa de função. Logo, o processo deveria ser conduzido por juiz de primeiro grau, jamais diretamente no Supremo Tribunal Federal. A exceção à regra exigiria que os supostos crimes representassem ameaça ao Estado Democrático de Direito, o que evidentemente não é o caso.

Após o primeiro arquivamento, o inquérito foi reaberto, agora sob incumbência do delegado Thiago Rezende. A PF, então, mudou de opinião. Roberto Mantovani Filho, Andreia Munarão e Alex Bignotto foram indiciados pelos crimes de calúnia, injúria e injúria real. Apesar dos pedidos dos advogados dos acusados para terem acesso às imagens do aeroporto de Roma, já sob posse de Dias Toffoli, o requerimento foi negado, em claro cerceamento ao direito de defesa. A principal fonte de prova da acusação é o depoimento de Alexandre de Moraes e seus familiares. Ao receber o indiciamento, o Procurador-Geral da República Paulo Gonet não teve dúvidas: denunciou todos. Agora, os Mantovani serão julgados pelos colegas de Alexandre de Moraes no STF.

A alegada parcialidade que ensejou a anulação da maior parte da Operação Lava Jato não se aplica ao caso dos Mantovani. Para o STF, eles são culpados, até que se prove o contrário. Vivemos um tempo de garantismo jurídico de conveniência. Importa mais quem é vítima ou acusado do que quais os crimes em discussão. Millôr Fernandes brincou, certa vez, ao dizer que todos os brasileiros são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. A igualdade prevista na Constituição Federal, documento que o STF tem o dever de guardar, poucas vezes foi tão vilipendiada como em ações recentes da Suprema Corte.

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